Inês Galvão- Análise do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17/12/2003, relativo ao processo nº 01492/03

Análise do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2003 I- Explicitação do caso em juízo

1- Enquadramento da matéria de facto provada

A Câmara Municipal de Cascais (doravante CMC) apresentou ao INFARMED uma proposta global de localização de novas farmácias no Concelho de Cascais. A Recorrente solicitou ao INFARMED , ao abrigo do disposto no n.o 4 da Portaria n.o 936-B/99, de 22-10, a transferência da Farmácia para outro local. A CMC pronunciou-se quanto à requerida transferência da Farmácia da Recorrente, no sentido daquela pretensão ser válida. A Autoridade Recorrida notificou a Recorrente informando-a de que a sua pretensão não se enquadrava em nenhuma das localidades definidas como prioritárias pela CMC. Por deliberação a Autoridade Recorrida indeferiu o pedido de transferência da Farmácia.

2- Argumentos apresentados pelas partes

a) Relacionado com o princípio da proporcionalidade

A Recorrente invocou uma possível violação do princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação, dizendo que a limitação da autorização de transferência para locais considerados prioritários era inadequada ao fim visado com o regime especial consagrado na Portaria n.o 936-B/99, de 22 de Outubro. Assim, a Recorrente imputa à sentença recorrida uma nulidade por omissão de pronúncia, por não ter sido apreciada a matéria referente ao vício de violação de lei por ofensa do princípio da proporcionalidade.

Todavia, o parecer apresentado pela Procuradora-Geral Adjunta e pelo Recorrido vai ao encontro da tomada de posição da jurisprudência, que tem sido unanime quanto ao assunto, afirmando que só ocorre nulidade por omissão de pronúncia nos casos em que o Tribunal não toma posição sobre uma questão que devesse conhecer.

b) Relacionado com o princípio da participação

A Recorrente invocou que a deliberação do INFARMED padece de um vício de forma por falta de realização de audiência prévia da Recorrente, prevista no art. 100.o/1 do C.P.A.

A Recorrente foi chamada a intervir na audiência prévia. Contudo, a informação que lhe foi comunicada não continha todos os elementos relevantes para a deliberação que está agora a ser impugnada. Em sede de audiência prévia, deve o interessado dispor de toda a informação relevante, o que não sucedeu no caso em apreço. Foi negado o direito da Recorrente ser ouvida antes de ser tomada a decisão final pelo que se considera que a sentença recorrida violou o disposto no art. 100.o do C.P.A.

O Recorrido contra-argumentou referindo que a audiência prévia dos interessados podia ser dispensada por força do disposto no art. 103o/2 alínea a) do C.P.A, como efectivamente foi, pelo que a decisão não tem nenhum vício de forma.

c) Relacionado com a interpretação das normas e com o interesse público

A Recorrente defendeu que a transferência de uma farmácia não depende de o novo local ser considerado prioritário, basta que respeite os requisitos que resultam (nomeadamente a capitação) das normas constantes dos n.os 2 e 3 da Portaria n.o 936-A/99, de 22 de Outubro, ex vi n.o 2 da Portaria n.o 936-B/99, de 22 de Outubro. O objetivo não é que o local para onde se requer a transferência seja o local "ideal" de entre todos os possíveis mas sim que seja um local admissível perante os critérios legais.

Os dados estatísticos fornecidos pela freguesia demonstram que a localidade em causa é a mais populosa (13.060 habitantes), pelo que, de acordo com a regra da capitação prevista na alínea a) do n.o 1 do ponto 2o da Portaria n.o 936-A/99, seria possível a instalação de três farmácias.

O que está em causa no programa especial de transferência de farmácias previsto na Portaria n.o 936-B/99, de 22 de Outubro, não é a cobertura do território (como defendido pelo Recorrido) mas sim, a cobertura da população. Quando se refere no preâmbulo da Portaria n.o 936-B/99 "os locais onde as farmácias escasseiam” faz-se referência a locais com elevada concentração populacional e não a zonas com um baixo número de farmácias.

É nestes termos que a Recorrente sustenta que esta decisão é ilegal. Tal fica a dever-se ao facto de esta localidade abarcar 1⁄4 de toda a população da freguesia, pelo que carece de mais farmácias para satisfazer as necessidades da população, para além das que já esxistem. A Recorrente invoca assim um vício de violação de lei por ausência de base legal ou por violação do disposto nos n.os 2.o e 3.o da Portaria n.o 936-A/99, de 22 de Outubro.

O Recorrido contra-argumenta dizendo que o que está em causa na transferência de farmácias é direccioná-las para locais mais carenciados de assistência farmacêutica, sendo esta a própria razão de ser do regime excepcional instituindo pela Portaria no 936-B/99.

2- Decisão dos Tribunais nas diferentes instâncias:

1a instância:

A Recorrente interpôs no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa um recurso contencioso de anulação da deliberação do INFARMED que indeferiu o pedido de transferência da farmácia. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa negou provimento ao recurso pelo que o processo instaurado foi recusado e considerado sem efeito. Em sede de primeira instância, a decisão do Tribunal foi favorável ao Recorrido.

Foi nestes moldes que a Recorrente interpôs o presente recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.

2a instância:

Uma vez que não é feita referência a outro tribunal, é de considerar que a 2a instancia que apreciou o processo em causa foi o Supremo Tribunal Administrativo.

A sentença do Supremo Tribunal Administrativo concluiu que, no caso em apreço, não existe qualquer disposição legal que atribua à Administração um poder discricionário de autorizar a transferência de farmácias, no âmbito do programa especial previsto na Portaria n.o 936-B/99.

O regime geral de transferência de farmácias, previsto no art. 16.o da Portaria n.o 936-A/99 , atribuí à Administração um poder discricionário de autorizar as transferências, como evidencia o seu n.o 1 “(...)poderá ser autorizada, por deliberação do conselho de administração do INFARMED, a transferência de farmácia, dentro do mesmo concelho (...)”.

Todavia, no âmbito do programa especial previsto na Portaria n.o 936-B/99 não é incluída a expressão “poderá” ou semelhante, muitas vezes utilizada para exprimir a atribuição de um poder discricionário. A expressão utilizada “é permitida a transferência de farmácias”, revela a atribuição aos interessados de um direito à transferência, reunidos os requisitos legais.

Por imperativo do princípio da legalidade, consagrado nos arts. 266.o/ 2 da C.R.P e 3.o do C.P.A, que baliza a atuação administrativa, não sendo atribuído à Administração, no âmbito do programa especial, um poder discricionário idêntico ao que lhe é concedido no regime geral de transferência de farmácias, conclui-se que o poder conferido pela Portaria n.o 936-B/99 é um poder vinculado.

O acto recorrido, que recusa a concessão de autorização para a transferência de farmácia, é ilegal por falta de suporte normativo e por padecer de um vício de violação de lei pelo que é anulável (art. 136.o do C.P.A.). Desta forma satisfaz-se a pretensão da Recorrente.

O Supremo Tribunal Administrativo discordou da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, dando provimento ao recurso contencioso e anulando o acto recorrido.

II- Questões relevantes
1- Análise do caso em face das temáticas relevantes na nossa disciplina:

a) Princípio da legalidade:

No art. 3.o do C.P.A, o princípio da legalidade deixou de ter “uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa”1. Por outro lado, deixou de interessar a legalidade formal que remonta ao período mencionado, interessa-nos agora a legalidade material entendida como a subordinação da Administração a todas as fontes de natureza jurídica.

Com o surgimento do sentido positivo deste princípio, emergiu a necessidade de existir uma norma que habilite expressamente a Administração Pública a actuar. Uma actuação administrativa que careça de previsão legal é tida como ilegal: “ (...) sendo ilegais não apenas os actos (...)

Vide FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.a edição, página 40.

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administrativos produzidos contra proibição legal, como também aqueles que não tenham previsão ou habilitação legal, ainda que genérica (...)”. 2

Do agora dito, podemos concluir que as condições para a implementação das portarias devem ser entendidas como os únicos requisitos de que depende o exercício do direito de transferência de farmácias. Tal fica a dever-se ao facto de a Administração, em respeito ao princípio da legalidade na sua vertente positiva, não ter permissão para criar outros requisitos (sob pena de ilegalidade) que não estejam previstos no bloco de legalidade aplicável ao caso. Quer isto dizer que, verificadas as condições apresentadas na previsão das normas constantes das Portarias, é de aplicar a estatuição das mesmas que conduz á autorização da transferência das farmácias, sendo este o argumento da Recorrente.

O raciocínio desenvolvido supra tem como base a ideia de que a expressão “condições” não constitui um conceito indeterminado pelo que não compete á Administração concretizá-lo. Assim sendo, e como veremos adiante3, não existe aqui nenhuma margem de livre apreciação do Recorrido uma vez que este conceito não carece de interpretação. A forma como surge o conceito em causa na norma - “condições gerais da instalação” - sugere que seja necessária a verificação de certos requisitos ou circunstâncias para que se seja aplicável a estatuição da norma ao caso concreto.

Entender estas condições num sentido diverso, o da Autoridade Recorrida, seria ver estes requisitos como limites ao poder de autorizar pelo que seria válido á Administração autorizar ou não a transferência de acordo com outros critérios que não os estabelecidos por lei. Esta hipótese conduz a uma solução ilegal pois atribuiu ao Recorrido o direito ao exercício de um poder discricionário que não está consagrado em nenhum diploma derivado ao facto de estarmos perante um poder vinculado.

Por fim, rematando esta questão, é ainda de referir que no âmbito do programa especial previsto na Portaria n.o 936-B/99 não é utilizada a expressão “poderá”, incluída no regime geral, mas sim a expressão “é permitida a transferência de farmácias”. Temos aqui presente uma vez mais um indício de que é atribuído aos interessados o direito à transferência bastando a verificação dos requisitos legais previstos na norma.

b) Poder vinculado e poder discricionário:

Dominantemente, as normas jurídicas destinam-se a orientar as condutas dos seres humanos. Desde que a conduta surja, o indivíduo que a pratica cumprirá, idealmente, a estatuição da norma.

Considera-se que estamos perante um poder vinculado quando a lei não atribui ao respetivo titular a possibilidade de escolher a solução a adotar. Por sua vez, o poder discricionário adequa-se aos casos inversos, nos quais é conferida autonomia ao destinatário para configurar os efeitos

Vide MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, em Código do Procedimento Administrativo Comentado, volume I, 1.a edição, página 138.

Quanto ao ponto: b) Poder vinculado e poder discricionário.

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jurídicos que resultam da norma, sendo que este deverá adequá-la á prossecução do interesse público protegido pela norma que o confere4.

Acerca da temática surge uma querela doutrinária entre as opiniões de vários Professores, entre as quais coloco em evidência: FREITAS DO AMARAL; VASCO PEREIRA DA SILVA; MARCELLO CAETANO.

Primeiramente, FREITAS DO AMARAL5, considera que“não existem actos totalmente vinculados nem totalmente discricionários”. O principio da densidade mínima da norma ou da determinabilidade legal constata a necessidade de existir uma previsibilidade mínima da norma que impeça a feitura de normas totalmente discricionárias. Por seu turno, não existem também atos apenas vinculados uma vez que a Administração carece de liberdade de atuação em todas aquelas situações que são impossíveis de prever. FREITAS DO AMARAL considera ainda que o poder discricionário é livre, concepção esta criticada por VASCO PEREIRA DA SILVA que considera que o poder em causa é uma vontade normativa que corresponde á realização do ordenamento jurídico e por isso não são vontades livres.

Em segundo lugar, VASCO PEREIRA DA SILVA considera que cada poder abarca elementos discricionários e elementos vinculados. Estes aspectos serão identificados e úteis em três momentos diversos: o momento da interpretação; o momento da apreciação; e por fim, o momento da decisão. Ao lado desta opinião, SÉRVULO CORREIA apresenta dois momentos: a margem de livre apreciação e a margem de livre decisão. É neste sentido que o último autor é criticado por VASCO PEREIRA DA SILVA pois para este a margem de decisão não é livre mas sim balizada por princípios e normas do nosso ordenamento jurídico.

Por fim, MARCELLO CAETANO, embora actualmente não acolha adeptos na doutrina portuguesa, tinha uma visão ciente para o seu tempo, defendeu que o poder discricionário era uma exceção á legalidade e que seria também ele livre. Nas suas palavras: “ O poder é vinculado quando a lei não remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada; e será discricionário quando o seu exercício fica entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher o procedimento a adoptar em cada caso como mais ajustado à realização do interesse público protegido pela norma que o confere”.

Quanto ao enquadramento desta temática no caso em apreço, remeto tal abordagem para a explicitação realizada supra6.

MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, Almedina, 2008. No mesmo sentido, pode ver-se FREITAS DO AMARAL, Manual de Direito Administrativo, volume II, 2a reimpressão, Almedina, 2003.

FREITAS DO AMARAL, Manual de Direito Administrativo, volume II, 2a reimpressão, Almedina, 2003. Quanto ao ponto: a) Princípio da legalidade.

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c) Princípio da proporcionalidade

No que concerne ao princípio da proporcionalidade é de referir que a sua composição é preenchida com três vertentes: a necessidade, que implica que a tomada de decisão da Administração deva ser a menos lesiva para os particulares; o equilíbrio ou razoabilidade, que suscita a necessidade de se ponderar entre os interesses dos particulares e os interesses da Administração ; e por fim, a adequação, que no caso em apreço foi considerada, pela Recorrente, violada.

A Recorrente considera a deliberação incongruente com o fim/objetivo do regime especial consagrado na Portaria n.o 936-B/99, de 22 de Outubro. Por sua vez, o Recorrido considerou a decisão adequada á satisfação dos fins de interesse público.

O interesse público aqui em causa será o de fomentar o estabelecimento equilibrado de farmácias por todo o território de modo a satisfazer as necessidades da população residente em cada local.

A decisão recorrida foi proferida na ânsia de evitar um aglomerado excessivo de farmácias em determinadas zonas e a inexistência destas noutros locais, pelo que foram postas de parte as considerações acerca das necessidades da população e apenas se levou em conta o número de farmácias existente em cada local. Este não é o mote correspondente ao interesse público que deverá ser levado a cabo nestas circunstâncias. Assim, é de considerar válida a tomada de posição da Recorrente que pretende cobrir as carências das populações.

d) Princípio da participação

A Recorrente invocou uma violação do seu direito de audiência prévia, previsto no art. 100.o/1 do C.P.A. Este mesmo artigo impõe que se assegure o direito de audiência dos particulares, sempre que não se verifique nenhuma das circunstâncias abrangidas pelo art.103o do mesmo diploma.

Também o art. 267.o/5 da CRP contribui para reforçar a necessidade de audiência dos interessados com vista a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para o apuramento e esclarecimento dos factos e para uma mais adequada e justa decisão administrativa. Os fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto não demonstram a relevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto. Aquilo que demonstra a importância deste direito é a mera possibilidade de o interessado interferir no conteúdo decisório do acto.7

A omissão desta audição constitui a preterição de uma formalidade legal e torna a decisão anulável, ao abrigo do art. 163.o/1 do C.P.A. No caso concreto, não existe fundamento que justifique a aplicação do art.103.o do C.P.A.

7Vide o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.o 1374/13.

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2- Tomada de posição

Na minha opinião, não é de aceitar a defesa da decisão proferida pela 1a instância, devendo preferir-se a tomada de posição da 2a instância uma vez que não existe qualquer disposição legal que atribua à Administração um poder discricionário de autorizar a transferência de farmácias, no âmbito do programa especial previsto na Portaria n.o 936-B/99.

Portanto, apesar de existir um regime geral de transferência de farmácias, previsto no art. 16.o da Portaria n.o 936-A/99, que atribuí à Administração um poder discricionário de autorizar as transferências, o regime especial colide com o regime geral, devendo prevalecer o primeiro.

É ainda de referir a importância do princípio da legalidade que baliza a atuação administrativa, pelo que a Administração, no âmbito de um poder vinculado apenas poderá actuar de acordo com o previsto na portaria.

Por outro lado, apela-se ao cumprimento dos princípios da participação e da proporcionalidade, com vista á prossecução de uma boa atuação administrativa.

Inês Galvão; No. 66442; Turma B; Subturma 13. Bibliografia:

  • -  CAETANO, MARCELLO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2008.

  • -  CAUPERS, JOÃO e EIRÓ, VERA, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora editora, 12a

  • -  edição, 2016.

    DO AMARAL, Diogo Freitas, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 2a reimpressão,

  • -  Almedina, 2003.

    SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina,1a edição, 2016.

    Jurisprudência consultada:

    Ac. STA de 15/10/2014, Processo n.o 1374/13.

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