Os sistemas administrativos: sua história e evolução; Marta Geada Salvador
O que é o Direito Administrativo e será que este é “uniforme”? Neste trabalho proponho-me a, primeiramente, dar uma breve noção do Direito Administrativo em si, de seguida analisar os diferentes tipos de sistema e, por fim, referir e observar a evolução dos mesmos.
Respondendo à pergunta exposta acima, não só existem diversos sistemas administrativos, como também diversas definições do próprio Direito Administrativo: desde a definição dada por Zanobini -” […] a parte do direito público que tem por objeto a organização, os meios e as formas da actividade da Administração Pública e as consequentes relações jurídicas entre esta e os outros sujeitos […].”, em Itália; ou em Espanha, por García de Enterría -” […] um direito de natureza estatuária, enquanto dirige à regulação das espécies de sujeitos que se agrupam sob a denominação de Administrações Públicas, subtraindo esses sujeitos singulares ao direito comum […].”. No entanto, no caso Português, o Professor Luís Freitas do Amaral vem definir o Direito Administrativo como -” […] o ramo do direito público constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no exercício da actividade administrativa de gestão pública.”. Em relação à questão da “uniformidade” do Direito Administrativo, tal como sucede com os sistemas políticos e judiciais, a tipificação de diferentes modos jurídicos dentro da Administração dá, também, origem a diferentes sistemas administrativos, dos quais iremos focar-nos em três tipos fundamentais: o sistema tradicional, o sistema de tipo britânico (administração judiciária) e o sistema de tipo francês (administração executiva).
Começando pelo sistema administrativo tradicional, também chamado de sistema administrativo da monarquia tradicional. Neste detínhamos certas características determinantes do mesmo:
- Em primeiro lugar, focamo-nos na não subordinação da Administração Pública ao princípio da legalidade. Basicamente, as normas que regulavam a Administração Pública nem sempre eram revestidas de caráter jurídico, não tinham caráter obrigatório externo – revestiam meras instruções ou diretivas internas; eram regras avulsas, podiam ser afastadas por razões de utilidade política ou conveniência administrativa e, de acordo com a vontade do soberano, podiam ser dispensadas ou contornadas (através da atribuição de privilégios ou isenção de impostos).
- Já em relação ao segundo aspeto, era verificada a inexistência da separação de poderes – devido à não separação dos órgãos do poder executivo e do poder judicial. O Rei exercia tanto funções administrativas como judiciais – sendo tanto o supremo juiz como o supremo administrador. Citando as palavras de José Xavier Mouzinho da Silveira, relativamente ao decreto nº23 de 16 de Maio de 1832 -” Senhor, a mais bela e útil descoberta moral do século passado [século XVIII] foi sem dúvida, a diferença de administrar e julgar […]. Entre os Portugueses nunca foi bem definido […]. Atribuições diferentes eram dadas indiferentemente, e sobre o mesmo indivíduo eram acumuladas jurisdições não só incompatíveis, mas destruidoras umas das outras […].”
Durante séculos, até ao final do período do absolutismo, vigorou o sistema administrativo tradicional – sem separação de poderes e sem Estado de Direito; após as revoluções liberais, estabelecem-se os sistemas administrativos modernos baseados na separação de poderes e no Estado de Direito (o sistema administrativo de tipo britânico e o sistema administrativo de tipo francês).
Passamos então para o sistema administrativo de tipo britânico, também conhecido por sistema de administração judiciária (qualificação dada por Maurice Hauriou, em Précis de Droit Administratif et de Droit Public). Este sistema é caracterizado pelas seguintes nuances:
- A separação de poderes – destacando a lei de abolição da Star Chamber (1641) e o Act of Settlement (1701);
- O Bill of Rights, que veio definir que o common law seria aplicado a todos – subordinando o Rei ao Direito; a consagração do rule of law;
- A distinção entre administração central e administração local. As autarquias locais eram encaradas como verdadeiros governos locais;
- A sujeição da Administração aos tribunais comuns, impedindo a invocação de imunidades e privilégios por parte da Administração em relação aos particulares;
- The common law of the land – o Rei, os outros órgãos da administração central e os municípios estão todos, como os simples particulares, subordinados ao direito comum;
- A execução judicial das decisões administrativas: as decisões unilaterais da Administração não têm em princípio força executória própria, necessitando de intervenção judicial;
- Garantias jurídicas dos particulares – um particular cujo direito tenha sido violado pode recorrer a um tribunal (normalmente o Kings Bench), de modo a que este lhe ceda uma order ou um writ à autoridade pública - seja este proibitivo ou imperativo;
É um sistema descentralizado, que apresenta uma unidade de jurisdição - os tribunais comuns (consequência de serem regulados pelo direito comum). Este sistema assenta na igualdade de todos, até das próprias autoridades administrativas – rule of law - “[…] when we speak of the rule of law as a characteristic of one country, […] no man is above the law[…].” (A.V.Dicey, Introduction to the study of the Law of the Constitutuion. 1885).
Focando-nos agora no sistema de administração francesa, também chamado de administração executiva, temos as seguintes características:
- Em 1789, com a Revolução Francesa, foi proclamado o princípio da separação de poderes – separando a Administração da Justiça;
- A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mais concretamente o artigo 16º, que estabelece o Estado de Direito;
- Centralização: é necessário construir um aparelho administrativo obediente, eficaz e disciplinado. Napoleão Bonaparte procede: à organização hierárquica dos funcionários da administração central; à divisão do território formando uma administration locale de l’État; à dependência dos municípios, perdendo estes autonomia administrativa e financeira;
- A sujeição da Administração aos tribunais administrativos: são criados, em 1799, os tribunais administrativos. Cabia a estes a fiscalização da legalidade dos atos da Administração;
- A subordinação da Administração ao Direito Administrativo: sendo que a Administração prossegue o interesse público, de forma a satisfazer as necessidades coletivas, deve esta sobrepor-se aos interesses particulares que se oponham à realização do interesse geral. Deste modo, a Administração não só é dotada de poderes de autoridade e é também sujeita a deveres e restrições específicos - droit administratif;
- O privilégio da execução prévia: permissão para a Administração de executar as suas decisões por autoridade própria. As decisões unilaterais da Administração têm força executória própria, podendo ser impostas por coação aos particulares, sem necessidade de intervenção judicial;
- Garantias jurídicas dos particulares: as garantias dos particulares são efetivadas através dos tribunais administrativos. No entanto, estes não gozam de plena jurisdição face à Administração, podendo apenas anular um ato praticado caso este seja ilegal, deixando de fora a declaração das consequências ou a responsabilização da Administração;
Sendo curiosamente o sistema utilizado em Portugal (desde 1832), estamos perante um sistema centralizado e com uma dualidade de jurisdições.
Por fim, iremos finalmente proceder à observação da evolução de ambos os sistemas durante o século XX, que veio determinar a aproximação relativa de ambos.
- Iniciando pela organização administrativa temos, por um lado, uma crescente centralização da administração britânica com uma maior sujeição à tutela e à superintendência do Governo; por outro lado, uma descentralização da administração francesa através da transferência de numerosas funções do Estado para as regiões;
- Relativamente ao controlo jurisdicional da Administração, as diferenças mantêm-se. Observamos uma aproximação meramente de aparência: os recentes administrative tribunals, de Inglaterra, não finalizaram a continuidade da sujeição ao controlo dos tribunais comuns; o aumento da fiscalização dos tribunais judiciais, em França, não significa que o controlo da aplicação do Direito Administrativo tenha deixado de pertencer aos tribunais administrativos;
- No que toca ao direito regulador da Administração, observamos uma aproximação devido à transição do Estado Liberal para o Estado social de Direito;
- Falando da execução das decisões administrativas: em relação à Grã-Bretanha, surgiram como mencionado previamente administrative tribunals – utilizados para decidir questões de Direito Administrativo que a lei manda resolver por critérios de legalidade escrita; no que toca ao Direito Administrativo Francês, é concedido aos particulares a oportunidade de obter dos tribunais administrativos a suspensão da eficácia das decisões unilaterais da Administração Pública;
- As garantias jurídicas dos particulares são maioritariamente superiores no sistema britânico em relação ao sistema francês. Apesar disso, na Inglaterra os tribunais não podem tomar o lugar da Administração no exercício dos poderes discricionários que a lei lhe atribui; em França, os tribunais administrativos ganham cada vez mais poderes declarativos face à Administração, podendo os mesmos ir mais além da mera anulação de atos ilegais, podendo ir até à pena de ilicitude;
Concluindo o trabalho e respondendo à pergunta inicial, apesar de existir aproximação em relação a alguns aspetos dos sistemas, o princípio fundamental que inspira cada um deles é diverso, muitas das soluções que vigoram num e noutro lado são diferentes, a técnica jurídica utilizada não é a mesma, sendo a diferença essencial, o tipo de controlo jurisdicional da Administração.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume I;
Trabalho realizado por: Marta Geada Salvador, nº 66459; 2ºTB, subturma 13.
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