Traumas e evolução do processo administrativo - Mariana Graça Moura (aluna nº66344)
A infância, é uma altura da nossa vida em que todos nós devemos ser felizes, viver sem quaisquer preocupações ou perturbações, que se deve desenvolver num ambiente de paz e de afeto. Mas, infelizmente, não é isto que se sucede com todas as pessoas que, ao passarem por uma infância difícil, acabam por ganhar traumas que muitas vezes se perpetuam, deixando grandes marcas. Tal como determinadas pessoas têm uma infância complicada, também o Direito Administrativo teve uma destas, que se revelou traumática.
Podemos falar de dois traumas: um primeiro, que verificou com o aparecimento, na Revolução Francesa, do Contencioso Administrativo, que tinha a função de proteger os poderes públicos, deixando de lado aquilo que são os direitos dos particulares. Os orgãos da Administração julgavam-se a si próprios, sendo isto fruto do princípio da separação de poderes, que acabou por unir e confundir as funções de administrar e julgar.
O segundo trauma está relacionado com as circunstâncias em que o Direito Administrativo se tornou autónomo, uma vez que a proteção dos particulares não era um dos objetivos prioritários. Devido ao atropelamento de uma criança, Agnès Blanco, por um vagão de um de um serviço público, foi chamado o Tribunal de Conflitos para se pronunciar, pois, tanto o Tribunal de Bordéus como o Conselho de Estado, se afirmavam incompetentes para solucionar esta questão. O primeiro Tribunal referido também se veio a declarar incompetente e a afirmar que, por se tratar de um serviço público, não se podia regular pelas normas específicas das relações particulares a indemnização a ser aplicada. Assim, o início do Direito Administrativo ficou marcado pelo desprezo dos direitos particulares.
No Estado Liberal, os tribunais judiciais viam-se proibidos de se intrometerem nos assuntos da Administração, pelo que esta proibição se fundamentava com base no princípio da separação de poderes. A interpretação deste princípio pelos revolucionários franceses era deturpada e contraditória, uma vez que incorreu numa convergência e indiferenciação da Administração e da Justiça, formando, assim, um sistema em que tanto o juiz como o administrador eram a mesma coisa.
É pertinente fazer uma breve alusão ao Antigo Regime, de modo a percebermos com há uma continuidade e não uma ruptura entre a Revolução Francesa e o Antigo Regime, embora com algumas alterações. De acordo com a Revolução, pretende-se criar um novo Estado, sendo condição necessária para isso a separação de poderes. Quer isto significar que, o Estado liberal é o resultado da junção de duas perspectivas contrárias: um primeiro período onde se dá a concentração do poder, equiparando-se ao modelo ditatorial e um segundo período, onde é crucial a separação de poderes e a definição e o respeito pelos direitos individuais, onde já se está perante o modelo liberal. As instituições do Antigo Regime serviram de inspiração à criação de orgãos administrativos especiais, com o objetivo de proibir as autoridades judiciárias de controlarem a Administração.
O sistema do administrador-juiz vai-se manter, mas vão ser procedidas determinadas alterações.
Num segundo período, o sistema vigente era o da justiça reservada, pelo que foi criado o Conselho de Estado, enquanto orgão da Administração consultiva, que aconselhava e também detinha a função de resolver conflitos administrativos, através da emissão de pareceres, que teriam de obter aprovação pelo Chefe de Estado.
Depois, num terceiro período, encontrava-se em vigor um sistema denominado de justiça delegada. Foi através da Lei de 24 de maio de 1872, que se assistiu à transição da justiça reservada para a justiça delegada mas, embora tenha sido notória uma maior autonomia do Conselho de Estado, a verdadeira transformação do sistema administrador-juiz em tribunais administrativos ainda levou algum tempo para se realizar. Remontando ao sistema de justiça delegada, o executivo delegava ao Conselho de Estado as decisões, as quais se tornaram definitivas e que eram quase sempre seguidas.
Tal como refere o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, tratava-se de um sistema “meio-administrativo”. Isto, porque, havia ainda presença do sistema do administrador-juiz, mas, também, havia uma maior liberdade, concedida pela delegação do poder de julgar. O sistema da justiça delegada, enquanto sistema liberal visava que uma entidade independente se ocupasse da proteção dos direitos dos particulares e, enquanto sistema administrativo, concedia uma posição especial no processo à Administração, o que limitava os poderes do juiz.
É o desenvolvimento da noção de Estado, associada à ideia de Estado Social, que vai permitir a ultrapassagem de traumas de uma infância difícil. Considera-se ter havido um milagre no Direito Administrativo, o qual se traduziu na lenta transformação de regras e instituições criadas a fim de proteger a Administração e de dar um maior apoio aos particulares.
Sucederam-se acontecimentos importantes para a Administração, como, em 1889, o acórdão Cadot, o qual considerava o Conselho de Estado a primeira instância de Contencioso Administrativo e, também a este respeito, é de referir a reforma de 1953, a qual procedeu à transformação dos antigos Conselhos de Prefeitura em tribunais administrativos.
É em 1980 que o Conselho Constitucional declara a identidade de natureza dos tribunais comuns e dos tribunais administrativos e afirmar a independência da jurisdição de cada um.
Com o Estado Social, assistiu-se à afirmação de direitos fundamentais e também à estipulação de relações recíprocas entre as autoridades públicas e os particulares (colaboradores na realização dos objetivos do Estado). Isto levou a uma maior preocupação e valorização dos privados, pelo que estes passaram a ser vistos como sujeitos de direito e titulares de posições jurídicas perante a Administração. Para além disto, a Administração ficou encarregue de realizar tarefas de nível económico e social e tornou-se prestadora de bens e serviços aos particulares.
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