Discricionariedade Administrativa - Dânia Marques, nº 66413

A evolução do princípio da legalidade no sentido do seu alargamento e do seu entendimento material, em vez de formal, significa ser necessário um maior controlo das atuações da Administração, visto não estar apenas em causa a contrariedade à lei, mas a todo o Direito. Vejamos, então, antes do mais, como evoluiu a noção de discricionariedade da Administração no nosso país, para melhor compreendermos os seus contornos atuais. De acordo com os ensinamentos do Professor Vasco Pereira da Silva, houve quatro posições fundamentais acerca da distinção entre os poderes vinculado e discricionário, no quadro da doutrina portuguesa:

 

1) A posição clássica, marcada pelo entendimento liberal da legalidade e da separação de poderes e defendida em Portugal pelo Professor Marcello Caetano, era a de que os atos vinculados se distinguiriam dos atos discricionários, correspondendo esta discricionariedade a um espaço livre de Direito, o que implicava que os tribunais não poderiam intervir neste âmbito de "liberdade de decisão" da Administração: um ato discricionário seria, portanto, uma exceção ao princípio da legalidade e não poderia ser jurisdicionalmente controlado.

 

2) O Professor Freitas do Amaral veio, entretanto, defender que a discricionariedade não é uma exceção ao princípio da legalidade e que não há atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários, todos tendo ambas as facetas ("mistura ou combinação"), apenas sendo possível perguntar em que medida cada ato é discricionário ou vinculado. Afirma este Autor que cada ato tem, sempre, pelo menos dois elementos vinculados por lei - a competência e o fim. Assim, do seu ponto de vista, essa distinção apenas deveria fazer-se a nível dos poderes (poder discricionário e poder vinculado). O Professor Freitas do Amaral defendeu também que os poderes discricionários não poderiam ser controlados pelos tribunais, mas que todos os aspetos vinculados dos atos sim (e portanto todos os atos seriam sujeitos a controlo, nos seus aspetos vinculados).

 

3) Nos anos 80, o Professor Sérvulo Correia, por sua vez, partindo de uma distinção conhecida do Direito Alemão, veio distinguir duas modalidades de discricionariedade:

  • Margem de livre apreciação: no exercício de um poder, poderia a Administração ter esta margem de apreciação, antes ainda da decisão final,ao nível da subsunção dos factos à norma.
  • Margem de livre decisão: é a discricionariedade em sentido clássico e corresponderia, no entendimento do Professor, à possibilidade de proceder à decisão final.
 
4) A posição atual do Professor Vasco Pereira da Silva:
 
O Professor considera que não se deve associar a discricionariedade à liberdade (contrariamente às posições anteriormente expostas dos Professores Freitas do Amaral e Sérvulo Correia), pois a Administração nunca é livre, estando sempre vinculada, nas suas atuações, à prossecução do interesse público (que é o norte, guia e fim da Administração Pública, segundo expressão do Professor Freitas do Amaral) e ao Direito (nomeadamente, às normas que lhe conferem competências, não nos podendo esquecer que vigora o princípio da competência no âmbito da atuação administrativa: quae non sunt permissa prohibita intelliguntur, ou seja, "o que não for permitido é proibido"). Assim sendo, a "margem de manobra" que a Administração adquire por via da discricionariedade nunca pode ser comparada à vontade livre dos indivídios: a vontade dos órgãos públicos é, sempre, uma vontade normativa, o que justifica que a Administração fique vinculada pelos seus atos e responda por eles. Neste sentido também, o Professor Vieira de Andrade considera que a discricionariedade não é uma liberdade, mas sim uma tarefa, uma função jurídica, não podendo ser confundida com arbítrio e, consequentemente, fundar as suas decisões na sua vontade. Em suma, a Administração pratica sempre decisões jurídicas, que concretizam o ordenamento jurídico e suas escolhas no caso concreto.
 
Com efeito, esta questão prende-se com outra que a transcende: qual é o fundamento da discricionariedade da Administração? Porque existe? Já vimos que o seu fundamento não pode ser a vontade, o arbítrio, da Administração. Avança o Professor Rogério Soares que as leis "não podem ser figuração abstrata, até ao milímetro, do que irá ser cada um dos atos administrativos (...); não podem ser leis-ato-administrativo-feito-nas-nuvens, à espera de que o administrador as puxe à Terra. Nestes novos domínios, o papel da lei é o de ser um instrumento diretor e ordenador duma decisão que cabe ao 2.º poder." Por outras palavras, a discricionariedade administrativa existe pela impossibilidade prática de a lei prever e regular todas as situações da vida. Esta primeira ordem de motivos corresponde às razões práticas e também vem enunciada no Manual dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos. Mas a estas juntam-se razões jurídicas: a discricionariedade visa assegurar o tratamento equitativo dos casos concretos (summa iura, summa iniura). Esta ideia, conforme com aquele que pensamos ser o entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, encontramos nos escritos atualizados do Professor Freitas do Amaral, que, como veremos, adota hoje uma posição muito diferente da que outrora adotou. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos entendem que é, além das razões práticas e com elas relacionado, o princípio da separação de poderes enquanto critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus órgãos que conduz à limitação da densidade normativa, o que, para estes Autores, justificaria a existência de uma margem de liberdade da Administração em face do legislador e do poder judicial - difícil não será prever que o Professor Vasco Pereira da Silva não sufraga na totalidade este entendimento, pela sua alusão à liberdade, mas, como veremos adiante, outra é também a sua opinião quanto ao controlo jurisdicional do exercício de poderes (predominantemente) discricionários.
 
Devido ao ponto anterior, é seguro afirmar que o Professor Vasco Pereira da Silva se aproxima mais da posição do Professor Sérvulo Correia do que da introduzida pelo Professor Freitas do Amaral, mas veremos agora em que aspetos o Professor se distancia também desta posição:
 
Em primeiro lugar, como já afirmámos, não considera adequado o uso do termo "livre" ("margem livre (...)"), por considerar que as decisões da Administração se baseiam sempre em critérios que têm em vista a prossecução do interesse público e que não podem nunca violar normas jurídicas, quer infra, quer supralegais. De facto, o Professor entende que até estes momentos que o Professor Sérvulo Correia autonomiza, embora tenham natureza discricionária, são sempre vinculados em certa medida. A prorrogar o defendido pelo Professor Vasco Pereira da Silva, basta conferir que a tese alemã que influenciou o Professor Sérvulo Correia não se refere nunca a "liberdade" (Freiheit) ou a espaços "livres" (frei), utilizando antes o termo Beurteilspielraum, pelo que se teria tratado de um "equívoco de tradução" (1).
O Professor entende ainda que, para além das margens de decisão e de apreciação, há ainda um outro momento que precede esses dois e que o Professor Sérvulo Correia não teve em consideração: a interpretação da lei é, já de si, uma tarefa de natureza discricionária. O Professor Vasco Pereira da Silva alude a uma nova linha de pensamento, marcadamente americana, designada de Culturalista, que entende precisamente que a interpretação de textos normativos é uma realidade cultural, semelhante à interpretação de textos literários ou de partituras musicais. Parte-se da ideia de que o leitor é, sempre, um autor, criando algo novo. É também neste sentido que Balkin, Professor de Direito em Yale, afirma que o Direito é uma espécie de "arte cénica". Assim sendo, para o Professor Vasco Pereira da Silva, há três momentos de discricionariedade que pautam a atuação administrativa, mas que o Professor entende que apenas podem ser autonomizados em termos teóricos, não práticos, por constituírem uma realidade lógica, contínua e integrada, podendo até coincidir. São, no entender do referido Autor, três momentos que existem em qualquer poder, sendo cada um destes momentos, também, simultaneamente vinculado e discricionário. É por estes motivos que o Professor Vasco Pereira da Silva considera a tese defendida pelo Professor Sérvulo Correia demasiado formalista. É também por estes motivos que o Professor Vasco Pereira da Silva entende que a distinção entre discricionariedade e vinculação não se adequa aos poderes, pelo mesmo motivo que não de adequa aos atos: todos os poderes têm aspetos vinculados e discricionários, em simultâneo.
 

Por último e em jeito de conclusão, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que, tendo em conta tudo quanto se disse, os tribunais controlam integralmente o poder vinculado e os vínculos do exercício do poder discricionário. O Professor Vasco Pereira da Silva entende que todos os aspetos de um poder, quer sejam vinculados, quer discricionários, estão sujeitos a controlo jurisdicional, pois que todos esses aspetos estão subordinados ao Direito, apenas concedendo que o controlo jurisdicional será mais forte consoante vá aumentando a medida de vinculatividade de um poder. Para compreendermos melhor a posição do Professor Vasco Pereira da Silva quanto ao controlo jurisdicional a que está sujeita a Administração no exercício de poderes (predominantemente) administrativos, importa conhecer as opiniões atuais de alguns Autores quanto ao mesmo problema.

 

Vejamos, então, sucintamente, o que entende hoje o Professor Diogo Freitas do Amaral por poder discricionário da Administração. Segundo o Autor, o poder é discricionário quando o seu exercício fique entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confereEntende, portanto, que o poder discricionário não é livre, estando a escolha não apenas vinculada pela competência e pelo fim, mas também, e sobretudo, por ditames decorrentes dos princípios e regras gerais que vinculam a Administração, o que implica que o órgão administrativo fica obrigado a encontrar, de entre as escolhas possíveis, aquela que se consubstancia na melhor solução para o interesse público (na linha de pensamento de Engisch, considera que, de entre as várias escolhas legais possíveis, há um resultado que é o "único ajustado" às circunstâncias do caso concreto). O Professor Freitas do Amaral entende, hoje, portanto, que o poder discricionário não é um poder livre dentro dos limites da lei, mas sim um poder jurídico delimitado pela lei.

 

O Professor Freitas do Amaral considera também, hodiernamente, que a maioria dos poderes têm simultaneamente aspetos vinculados e discricionários (o que não corresponde, ainda, à posição do Professor Vasco Pereira da Silva, mas é sem dúvida mais próxima do que outrora). Desenvolve o Professor Freitas do Amaral que nos poderes com aspetos vinculados e discricionários, os aspetos vinculados estão sujeitos a controlo de legalidade, pelo seu exercício ilegal, e os discricionários a controlo de mérito, pelo seu mau uso. Ou seja, defende que, em rigor, não há controlo jurisdicional do poder discricionário, mas antes controlo administrativo de mérito sobre o bom ou mau uso do poder, e controlo jurisdicional de legalidade dos aspetos vinculados dos poderes (predominantemente) discricionários. Relativamente ao controlo do mérito, afirmam os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos que este engloba a apreciação da oportunidade (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público visado pelo poder legalmente conferido por lei) e da conveniência (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público, à luz dos demais interesses públicos envolvidos), o que, de acordo com o artigo 3.º/1 do CPTA, os tribunais administrativos não têm competência para julgar. Estes Professores concordam, como referido supra, que a separação de poderes implica a ausência de controlo jurisdicional da margem de discricionariedade da Administração, pois, no seu entender, a atribuição de um poder (predominantemente) discricionário a um órgão administrativo corresponde a um juízo do legislador, segundo o qual o interesse público em causa seria melhor prosseguido pela Administração do que pelo próprio legislador ou pelos tribunais.

 

Retomando a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, podemos agora afirmar que esta se aproxima daquela defendida pelo Professor Freitas do Amaral, no que respeita aos vínculos que limitam toda a atividade Administrativa (não se excluindo, portanto, a discricionária). De facto, estes Professores concordam que, hoje, os poderes discricionários não são apenas sujeitos a controlo jurisdicional quanto ao fim competência, como também, em virtude do alargamento do entendimento da legalidade, quanto aos princípios gerais da Administração Pública, quer os constantes da Constituição (artigo 266.º), quer quanto aos constantes no CPA e legislação avulsa. Estes princípios são vínculos autónomos, não surgindo da circunstância concreta de existência de um poder discricionário específico.

No artigo 266.º da CRP, encontramos referência aos seguintes princípios:

  • Princípio da imparcialidade
  • Princípio da igualdade
  • Princípio da proporcionalidade
  • Princípio da boa fé
  • Princípio da justiça

O princípio da proporcionalidade, a que está sujeita a Administração, é particularmente expressivo do alargamento da aceção da legalidade e consequente reforço do controlo jurisdicional a que estão sujeitos os poderes discricionários. Isto porquê? Porque, controlando a necessidade, a adequação e o não prejuízo excessivo, acaba-se controlando o próprio modo como o poder discricionário é exercido. Se uma decisão for desnecessária, essa decisão é ilegal e como tal pode ser conhecida de um tribunal. Significa isto que a necessidade e adequação deixam de ser problemas de mérito e transformam-se em problemas de legalidade.

Também o princípio da justiça releva em sede de discricionariedade, pois permite considerar ilegal uma decisão materialmente injusta, quer se trate de uma decisão realizada no âmbito de poderes vinculados, quer discricionários.

 

Artigos relevantes: 266.º/2 CRP; 3.º/1 e 4.º CPA; 3.º/1, 71.º/2 e 95.º/3 CPTA

Normas que atribuidoras de poderes discricionários (enumeração exemplificativa): artigos 3.º/2, 145.º/3, 100.º/2, 157.º/1, 174.º/2 CPA; art. 8.º DL n.º 252/92, de 19 de Novembro.

Jurisprudência:


Bibliografia:

 

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