Decisão do Tribunal - Simulação de Direito Administrativo II

 Simulação Direito Administrativo 2023


Grupo - Tribunal




Decisão do Tribunal sobre a Simulação 


Após uma análise detalhada e cuidada dos argumentos apresentados, o grupo do Tribunal irá proceder à enumeração dos pontos que considerou mais importantes e relevantes, terminando com uma conclusão mais exaustiva sobre a parte pela qual, enquanto Tribunal, optámos.


Ilegalidade/ audiência dos interessados


Passo agora a argumentar que no ato administrativo executado por José Arrebatado, no âmbito do Programa Mais Habitação, o procedimento legalmente exigido não foi observado. 

 

Nos termos do artigo 1º/1 do CPA, o procedimento administrativo trata-se de um conjunto de regras e etapas que regulam a atuação da administração pública na tomada de decisões, sendo este caracterizado por 6 etapas a serem verificadas. No caso concreto, as alegações que foram feitas incidem principalmente sobre a fase da instrução, da audiência dos interessados e da decisão, pelo que prosseguirei a analisar as mesmas. 

 

A fase de instrução destina-se “a averiguar os factos que interessem à decisão final e, nomeadamente, a recolher as provas que se mostrarem necessárias”. João Castiço encontrava-se a viver fora de Portugal o que, por ser de todos os munícipes conhecido, é um facto notório. Neste sentido, o facto não carecia de prova, dada a sua notoriedade, nos termos do artigo 115.º/2 do CPA. O responsável pela direção do procedimento deveria ter feito constar do mesmo este facto, nos termos do n.º 3 do artigo 115.º do CPA. Assim, o diretor teve uma omissão de conduta, cuja é uma mera irregularidade. Além do exposto, nesta fase, o diretor do procedimento deveria ter solicitado a João Castiço, a prestação de informações e requerer ao mesmo a situação em que se encontrava a casa, nos termos do artigo 117.º/1, e como João Castiço não apresentou prova, deveria ter-se procedido a uma nova notificação, nos termos do artigo 119.º/1 do CPA.  Deste modo, é bastante claro que o processo foi conduzido com uma total rigidez, sem que fossem solicitadas informações, documentos ou a colaboração de Castiço através de meios de prova, pelo que considero que a Câmara Municipal agiu de má-fé, em desconsideração da fase de instrução.

 

Passamos agora à análise da fase da audiência dos interessados, que mereceu especial atenção na argumentação do Sr. Castiço. Como sabemos, a audiência de interessados, conforme resulta do disposto no n.o 1 do artigo 121.o do Código do Procedimento Administrativo (CPA), consiste no direito que os interessados têm “de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”. Visa, assim, que os particulares, previamente à tomada de uma decisão final por parte da Administração, sobre um assunto que diretamente lhes diga respeito, tenham a oportunidade de “pronunciar-se sobre todas as questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e de direito, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos” (cfr. n.o 2 do mencionado artigo 121.o do CPA). Trata-se de um dos princípios estruturantes da atividade administrativa e consubstancia uma formalidade essencial, que deve ser observada, apenas podendo ser legitimamente afastada nos casos expressamente previstos na lei. Posto isto, atendendo aos artigos 67.º e 68.º do CPA, o queixoso João Castiço tinha o direito a intervir no procedimento tendo em conta que se trata de um interessado, com base na sua titularidade do direito de propriedade, que foi posteriormente afetado pela decisão da Administração. 

 

No entanto, é alegado pelo Sr. João Castiço que não se realizou audiência do interessado. Este problema, de acordo com o Professor Regente Vasco Pereira da Silva, configura-se como um “vício de forma” de um ato e implica a sua ilegalidade material, visto que a Administração atuou sem ponderar todos os interesses envolvidos. Nomeadamente, o Professor Vasco Pereira da Silva entende o direito à audiência prévia como um direito fundamental, já que estamos perante o reconhecimento de uma posição jurídico-constitucional de vantagem do particular perante a Administração, como reconhece o artigo 267º/5 do CRP, sendo que tal configuração como direito fundamental é possível pela cláusula de não tipicidade dos direitos fundamentais (artigo 16º da CRP). Por conseguinte, a inobservância da audiência prévia de João Castiço deve ser entendida como violação de um direito fundamental, o que implica que a decisão que tenha resultado deste procedimento seja considerada como nula (artigo 161º/2d) do CPA). Há que destacar, adicionalmente, que o caso em julgamento não é abrangido por qualquer uma das causas justificativas da dispensa da audiência prévia dos interessados, nos termos do artigo 124.º do CPA. 

 

Para além do exposto, não parece ter sido cumprida a fase de preparação da decisão, no sentido em que é evidente que, na ausência de audiência prévia, a administração não ponderou adequadamente os argumentos aduzidos pelos particulares, como deveria ter feito. Quanto à fase da decisão, João Castiço não teve sequer a possibilidade de se pronunciar no procedimento e de exercer o seu direito de contraditório. Diz o artigo 121º do CPA, que os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final. Não há qualquer justificação para esta atuação, o que, por si só, implica que este ato seja nulo, nos termos do artigo 161º/2/d, pois o que está em causa é um direito fundamental, cujo seu núcleo essencial foi ofendido.

 

Note-se que, no caso em particular, o procedimento terminou pela prática de um ato administrativo, mormente a decisão do diretor do procedimento de classificar o imóvel como devoluto e proceder ao seu arrendamento forçado. No entanto, a respeito do princípio da legalidade (artigos 266º/2 CRP e 3º do CPA), deveria ter revelado a iminente possibilidade de inconstitucionalidade do regime de arrendamento forçado, face ao pedido de fiscalização sucessiva feito pelo Presidente da República. Ora, ciente da pendência da decisão sobre a inconstitucionalidade das normas em questão, poder-se-á argumentar que seria expectável que a Administração se abstivesse de atos executórios, à semelhança do que foi feito pelos restantes municípios. No entanto, José Arrebatado decidiu, ainda assim, avançar com a decisão. 

 

Quanto à notificação, em virtude do artigo 86º/2 do CPA, João Castiço tinha 10 dias para responder à notificação e cumprir o dever de uso do seu bem, prazo dilatado em 15 dias pela alínea b) do número 1 do artigo 88º deste mesmo Código. João Castiço teve 35 dias para se pronunciar de acordo com a lei e não o fez. No entanto, uma vez que João reside em país estrangeiro europeu, a sua situação concreta e particular tem de ser tida em conta por parte do município. Mais concretamente, é necessário ter em atenção que João Castiço é protegido pelo artigo 268º/3 da Constituição e pelo artigo 88º/1, alínea b) do CPA. Acontece que foi feita uma primeira notificação por parte da Câmara, a título de aviso, nos termos do artigo 110º/1 do CPA, notificação esta que interpela João a “cumprir o seu dever de uso do bem, sob pena de se vir a proceder ao arrendamento forçado”. Face à falta de resposta após 90 dias, o município, na pessoa de José Arrebatado, avança para o arrendamento forçado. Ora, esta decisão tomada pela administração consubstancia uma decisão administrativa, que padece de notificação própria, especialmente tratando-se de um ato que limita o direito à propriedade privada de João Castiço. É certo que José Arrebatado procede ao arrendamento forçado decorridos os 90 dias, sem emitir nova notificação relativa a esta decisão, sabendo que a notificação inicial consistia num mero aviso, não sendo claro e evidente que no seu conteúdo constava um prazo concreto para a resposta e correspondente ação de João.  

 

Termino, assim, a argumentar que o exposto violou igualmente o princípio da boa-fé previsto no artigo 10º do CPA. Como referido na apresentação do caso, a situação de emigrante de João Castiço era conhecida por todos, logo não se revela aceitável que a Administração aja sem ter em conta essa particularidade. E ainda, ao fazê-lo, a Administração municipal lesa a confiança fundada de João Castiço de que o seu imóvel e os direitos a estas subjacentes estariam salvaguardados durante a sua ausência no estrangeiro. Não pode revelar-se de qualquer maneira justo que alguém ausente no estrangeiro seja prejudicado e veja o seu imóvel ser sujeito a arrendamento forçado porque não conseguiu deslocar-se ao local para fazer uso da sua casa ou porque não conseguiu contactar a Administração e prestar provas de que o apartamento em questão não se tratava de um prédio devoluto num mero prazo de 90 dias. 


Inconstitucionalidade da norma que estabelece o arrendamento forçado


O caso apresentado incide sobre um dos direitos fundamentais, ou seja, o direito à propriedade privada (previsto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 17º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia). 


Ora, a norma que estabelece o arrendamento forçado prevê a mobilização de apartamentos devolutos, há mais de dois anos, para o efeito previamente referido. O art.º 266º/1 da Constituição da República Portuguesa prevê o princípio pelo respeito dos direito e interesses legalmente protegidos dos particulares, o que significa que a prossecução do interesse público não é o único critério da ação administrativa, ou seja, há que prosseguir o interesse público, respeitando simultaneamente os direitos subjetivos e os interesses legalmente protegidos dos particulares. 


Primeiramente é essencial definir “casa devoluta”. Segundo a Lei de Bases, toda a habitação que “se encontre, injustificada e continuadamente, durante o prazo definido na lei, sem uso habitacional efetivo, por motivo imputável ao proprietário, é considerada devoluta” - artigo 5º/1. A lei refere que não são consideradas devolutas as segundas habitações, as habitações de emigrantes e as habitações de pessoas deslocadas por razões profissionais ou de saúde - artigo 5º/2. Entre os motivos justificados para o não uso efetivo da habitação está a realização de obras devidamente autorizadas ou comunicadas, durante os prazos para elas definidos, ou a pendência de ações judiciais que impeçam esse uso. Apresentando-se João Castiço como emigrante, a sua habitação não deveria ser considerada devoluta. 


Em segundo, é necessário entender o âmbito da propriedade privada na ordem jurídica nacional. A propriedade privada é considerada um direito fundamental pela ordem jurídica nacional (protegido pelo artigo 62º da Constituição da República Portuguesa e pelo artigo 1305º do Código Civil) e internacional. O direito de propriedade implica um conjunto amplo de poderes. Os seus titulares podem adquirir bens; podem usar, fruir e dispor dos bens que lhes pertencem, podendo também transmiti-los em vida ou por morte e não serão deles arbitrariamente privados.  


Como referido anteriormente através da palavra “arbitrariamente”, não é um direito absoluto, visto que o artigo 62º/2 da Constituição da República Portuguesa consagra que, devido a razões juridicamente relevantes (urbanísticas, de segurança ou ambientais), a livre utilização e disposição de um bem pelo proprietário podem ser limitadas. Sendo ainda de relevo referir que nem mesmo o direito a não ser privado da propriedade é absoluto, pois na Constituição é prevista a desapropriação forçada pela autoridade pública (mediante certos pressupostos e compensação pecuniária). 


Passamos então para o processo e análise da inconstitucionalidade da norma. No direito português, para resolver a inconstitucionalidade de uma norma, é necessária a realização de uma ação de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, ou seja, deve ser feita a apresentação de um pedido para verificar a constitucionalidade da norma em questão, sendo que, caso seja inconstitucional, deverá ser declarada a sua inaplicabilidade. Neste caso, apesar do projeto de lei ter sido aprovado, devido às dúvidas quanto à constitucionalidade, é feito um pedido de fiscalização sucessiva, pelo Presidente da República. 


O regime da fiscalização sucessiva encontra-se previsto no artigo 281º da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o 283º (uma vez que se trata de uma fiscalização sucessiva abstrata por omissão), estabelece que o Tribunal Constitucional pode apreciar e declarar, por força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, requeridas ao tribunal pelo Presidente da República, tal como acontece no caso. O artigo 282º/ 1 da Constituição da República Portuguesa, estabelece que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional – as normas declaradas inconstitucionais são nulas, tendo a nulidade de ser declarada pelo Tribunal Constitucional.  


Tendo isto em conta, tal como o facto de que não houve espera pela decisão do Tribunal Constitucional por parte de José Arrebatada, avançando e impondo a norma a João Castiço, estamos perante um confronto de dois direitos constitucionalmente consagrados, entendidos como direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias — o direito à propriedade privada e o direito à habitação. O primeiro exprime uma liberdade que tem de ser concedida a todos os cidadãos, o outro exprime um dever que o Estado tem de garantir habitação a todos os seus cidadãos. No entanto, não faz sentido que para a realização do seu dever, o Estado viole a liberdade dos outros – estando vinculado pelo dever de seguir o princípio da justiça. 


Concluindo esta parte da decisão e seguindo o Princípio da Proporcionalidade (presente na Constituição da República Portuguesa e no Código de Procedimento Administrativo), estas medidas são desproporcionais face ao pretendido, o interesse público não se deve sobrepor à propriedade privada neste caso. Aplicamos o artigo 7º/2 do Código de Procedimento Administrativo, visto que esta medida vai contra os direitos e interesses subjetivos de titulares (João Castiço) que, por sua vez, são tutelados. 


Violação do Princípio da Imparcialidade 


Analisaremos de imediato a questão da procedência do argumento relativamente à violação do princípio da imparcialidade, consagrado no artigo 9º do Código de Procedimento Administrativo e constitucionalmente no artigo 266º. 


Sumariamente, a imparcialidade vincula as estruturas orgânicas da Administração a agirem atentando o interesse público e os critérios previstos na lei, independentemente das posições pessoais dos titulares dos cargos administrativos, sendo que os órgãos da Administração são terceiros relativamente aos interessados devendo a sua atuação mostrar-se isenta e equidistante. 


Com base nesta ideia, o CPA veio consagrar algumas garantias de imparcialidade no âmbito do procedimento administrativo, dando assim execução prática à ideia de proibição de quaisquer favoritismos ou de quaisquer discriminações arbitrárias e contrárias à lei. As garantias em causa são os impedimentos, as escusas e a suspeição. 


Os impedimentos consubstanciam situações de proibição de intervenção e estão elencados taxativamente no artigo 69º. O senhor José Arrebatado e a senhora Ministra da Habitação são primos, isto é, parentes no quarto grau da linha colateral, não se enquadrando na alínea b) do nº1 do artigo 69º, uma vez que este só diz respeito a situações de relações familiares até ao segundo grau da linha colateral. 


Perante a conclusão de que o parentesco entre o senhor José Arrebatado e a senhora Ministra não se encontra abrangido por nenhum dos casos de impedimento previstos no artigo 69º cabe-nos analisar se poderá recair sob alguma das situações consagradas no artigo 73º. As escusas e as suspeições são situações em que não existe proibição absoluta de intervenção, mas em que esta deve ser excluída por iniciativa do próprio titular do órgão ou agente (escusa) ou do cidadão interessado (suspeição). No caso em apreço teríamos face a uma situação de escusa. No entanto, também aqui a relação familiar entre os dois sujeitos não é abarcada pela alínea que prevê a escusa no caso de parentesco – alínea a) do nº 1 do art. 73º. Embora tenha sido alargada a incidência para mais um grau na linha colateral, neste quadro nada se alterará, uma vez que o agente só poderia pedir dispensa de intervir no procedimento se se tratasse de parentesco em terceiro grau da linha colateral algo que já evidenciámos anteriormente não se observar. 


Por último, descartamos igualmente a hipótese de fundamentação por via do artigo 73º, nº 1, al. d) da existência de uma grande intimidade entre o agente e a pessoa com interesse direto no procedimento, de modo que o Presidente da Câmara fosse dispensado. Refutamos, desde logo, esse argumento dado que nem se provou o preenchimento do pressuposto de “grande intimidade”, nem o interesse subjetivo na prática do ato. 


É de notar também que o parentesco com a senhora Ministra não obsta à elegibilidade do senhor José Arrebatado à presidência da Câmara de A-dos-Cunhados, tal como nos é apresentado na Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de agosto, mormente nos artigos 6º e 7º, que estabelecem taxativamente os casos de impedimento gerais e especiais, no que concerne à elegibilidade para órgãos das autarquias locais. Entende-se com clareza que o atual caso não se emoldura em nenhum dos motivos de impedimento legalmente previstos. 


Em suma, a atuação do Presidente da Câmara não fora influenciada pela sua relação familiar com a senhora Ministra da Habitação, sendo que este apenas atuou em conformidade com o cargo para que foi eleito (artigo 57º, que por sua vez remete para o art. 79º da lei nº 169/99 de 18 de setembro). Sabendo que os primos são parentes em quarto grau da linha colateral e não havendo qualquer indicador no plano fático que comprove com certo rigor que o arrendamento forçado do imóvel foi desencadeado por dele advir qualquer aproveitamento da senhora Ministra da Habitação, considera-se que este argumento não procede por falta de sustentação legal.



Decisão Final


Perante os argumentos supramencionados, o Tribunal considera que a parte do Sr. João Castiço é a parte que tem razão no caso apresentado.


Tribunal

    Camila Rocha e Silva (nº66400); Inês Galvão (nº66442); Ricardo Alcobia (nº66546); Dânia Marques (nº66413); Marta Salvador (nº66459)

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