Análise Do Acórdão Do Supremo Tribunal Administrativo, Processo 0978/08 - Beatriz Brazão

Análise Do Acórdão Do Supremo Tribunal Administrativo, Processo 0978/08, De 30 de setembro de 2009, Relator Edmundo Moscoso


1.    Enquadramento

 

            O caso em análise, tem na sua base a deliberação da constituição do júri para o provimento de um lugar de Chefe de Serviço de Neurologia, realizado no Conselho de Administração (CA) do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (CHVNG). 

            Devido à existência de uma suposta “inimizade grave” entre “A” e um dos candidatos ao concurso, “B”, o CA do CVNG decidiu afastar “A” da constituição do jurí desse mesmo concurso, colocando-se, aqui, em causa a aplicabilidade do principio da imparcialidade

            O recorrente (adiante, também, designada por  “A”) intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto uma ação contra o CHVNG e B pretendendo a anulação das deliberações do CHVNG que determinam a constituição e a alteração do júri do concurso interno condicionado para provimento de um lugar de Chefe de Serviço de Neurologia, aberto por deliberação do CA do CHVNC. Como consequência dessa anulação, pretende o A a anulação de todo o concurso, ou seja de todos os actos consequentes daquela deliberação.

            O TAF do Porto acabou por negar provimento à acção, julgando a ação totalmente improcedente e os réus absolvidos do pedido. O “A” interpôs, assim, recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo (TCA) Norte,  onde se veio a conceder parcial provimento à acção interposta pelo recorrente e condenar o CHVNG a apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente 

            “A” não se conformando com o Acórdão do TCA, veio dele interpor o presente recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (adiante, “STA”)

 

            Cumpre, antes de prosseguir à apreciação do presente acórdão, serem esclarecidos outros pontos que são fundamentais para uma correta análise da temática a que o referido acordão se centra. 

 

2.    Principio da Imparcialidade


            O principio da imparcialidade, que decorre do artigo 266º nº2 da CRP e do artigo 9º do CPA determina que a Administração Pública deve atender aos interesses daqueles que com ela entram em relação, quer sejam públicos e privados, de forma ponderada e considerada com base em critérios objetivos de interesse público, que não podem ser afastados pelos interesses próprios do órgão, funcionário ou agente, sejam eles individuais, coletivos, politicos ou partidários. 

            Assim, o Professor Freitas do Amaral, numa formulação mais sintética, considera que o princípio da imparcialidade impõe que “os órgãos e agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo nas situações que devem decidir ou sobre as quais se pronunciem sem caráter decisório”.

 

2.1.  A vertente positiva e a vertente negativa do princípio da imparcialidade

 

            O princípio da imparcialidade pode ser retratado em duas vertentes, uma vertente positiva e a vertente negativa. 

            Ora, a vertente positiva relaciona-se com a obrigatoriedade da Administração Pública em ponderar todos os interesses, sejam eles públicos ou privados, que, à luz do fim que se pretende atingir, sejam relevantes para a decisão, estando, assim, aliado ao princípio da persecução do interesse público, proteção dos cidadãos e proteção de direitos. 

            Já quanto à sua vertente negativa, esta determina uma proibição aos agentes administrativos dotados de poder de ter em consideração e ponderar interesses, sejam eles públicos ou privados, que, à luz do fim que se pretende atingir, sejam irrelevantes para a decisão, isto é, casos que envolvam interesses pessoais, familiares e de interesses relacionados com todos aqueles que os relacionam proximamente.

 

2.2.  As garantias da imparcialidade

 

            Ora, o acatamento deste princípio não é garantido através de uma mera consagração legal. É, por isso, necessário impor determinados mecanismos preventivos de proteção do referido princípio: as chamadas garantias de imparcialidade. 

            Estas garantias comportam 2 níveis que revestem uma escala de gravidade e proximidade quanto ao objeto decisório: uma mais próxima, os impedimentos absolutos e outra mais afastada, a suspeição e escusa. 

            Com efeito, verificamos que, nos termos do artigo 69º, nº1, do CPA existe um impedimento de maior gravidade e absoluto relativamente a várias situações que envolvem uma perigosa e indubitável ligação entre o titular de órgão ou agente e interesses privados no procedimento, o que envolve uma proibição absoluta de intervenção. 

            Uma situação diferente consta do artigo 73º, nº1 do CPA, em que são referidas situações que, por apenas suscitarem dúvidas acerca da proximidade entre os interesses particulares e o titular de órgão ou agente administrativo, o seu grau não é tão intenso quanto a situação decorrente do artigo 69º do CPA, pelo que deve ser excluída meramente por iniciativa do próprio.            Veja-se que uma diferença fundamental entre ambas as garantias é o facto de numa situação de impedimento a substituição do titular do órgão ou agente da Administração que é normalmente competente por outro é obrigatória por lei, operando automaticamente, enquanto que havendo uma situação de escusa/suspeição a substituição é possível, mediante pedido pelo próprio titular do órgão ou agente ou por qualquer interessado na relação jurídica procedimental, mas já não é obrigatória. 

 

3.    Análise do caso

 

            No caso, “A” vem alegar a violação do princípio da legalidade (art. 3.º do CPA) por via do disposto no artigo 42º do Regulamento dos Concursos de Habilitação ao Grau de Consultor e de Provimento para a Categoria de Chefe de Serviço da Carreira Médico Hospitalar, que regula o concurso em questão nos autos e, especialmente, a violação do princípio da imparcialidade por parte do CA da CHVNG. 

            O ora recorrente vem, então, considerar que deveria ter sido nomeado para membro do júri visto que, por um lado, embora se encontrasse provado a existência de um conflito entre “A” e o recorrido “B”, visto que “na Inspeção-Geral de Saúde pende o processo disciplinar nº151/03-D, em que figura como arguido o ora autor, bem como o processo de averiguações nº8/04-AV, reportado a factos relacionados com o eventual conflito no Serviço de Neurologia em que exerce funções o ora Autor” ainda não tinham sido especificados factos concretos provados que permitissem considerar a existência de uma efetiva “inimizade grave”. 

            Como, por outro lado, porque cabia ao CA do CHVNG alegar e provar a impossibilidade de “A” pertencer ao júri, o que não se verificou. É neste sentido que o Autor alega que, não tendo sido levantada a escusa ou suspeição, não poderia o CA do CHVNG ter a iniciativa de, por esse motivo, excluir o Autor da constituição do júri do concurso.

 

            Cabe, assim, analisar as alegações referidas: 

            Primeiramente é de referir o artigo 73.º nº1, alínea d) do Código do Procedimento Administrativo que determina que “os titulares de órgãos da Administração e respetivos agentes, bem como quaisquer outra entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no serviço de poderes públicos, devem pedir dispensa de intervir no procedimento ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão e, designadamente: (d) se houver inimizade grave entre o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato”.

            Ora, neste sentido, e tal como bem salienta o presente acórdão, apesar de se considerar que existe, efetivamente, um conflito de relacionamento entre o ora recorrente e o recorrido “B”, não se sabe ao certo qual o tipo de conflito e se existe uma “gravidade” nesta “inimizade”. Salienta-se, assim, a ideia de que a inimizade grave é um fundamento para o pedido de dispensa e, não se verificando esse fundamento, à partida, não haverá possibilidade de dispensa do titular do órgão ou do agente. 

            Além disso, tal como esclarece o já mencionado artigo 73º nº2 do CPA, a dispensa deve ser pedida pelo titular do órgão ou agente que intervenha no procedimento ato ou contrato e sobre o qual se verifique a situação supramencionada, mas também pode ser pedida por qualquer interessado na relação jurídica procedimental. 

            Assim, e tal como salienta o STA, caso o agente ou elemento do júri não solicite a escusa (arto 48o no 1 do CPA), desde que exista fundamento atendível, assiste aos interessados susceptíveis de se sentirem lesados pela actuação de um determinado elemento do júri, caso considerem que ocorre fundamento para o efeito, a possibilidade de “opor a suspeição” (art. 48º nº 2 do CPA), situação esta em que obrigatoriamente terá que ser ouvido o elemento do júri visado, como o impõe o artigo 49º nº 3 do CPA. Isto é, enquanto a “escusa” para intervir no procedimento concursal apenas pode ser requerida pelo elemento do júri, a “suspeição” só pode ser deduzida pelos interessados, não se mostrando abrangida pela previsão do artigo 48º do CPA a possibilidade de o Conselho de Administração, por iniciativa própria, afastar ou preterir o recorrente da constituição do júri ao concurso em questão com fundamento na referida “inimizade”. 

            Será também de mencionar que de acordo com o artigo74º nº4 do CPA, os pedidos de dispensa com base numa situação de escusa/suspeição, devem ser formulados logo que haja conhecimento da circunstância que determina a escusa/suspeição. Assim, o mecanismo da “escusa” e da “suspeição”, enquanto incidentes do próprio procedimento concursal, apenas pode funcionar ou pode ser exercido depois de ter sido deliberada e divulgada a constituição do júri – visto não ser possível fazer-se juízos acerca da inimizade entre um elemento do júri e um potencial candidato, que embora possua os respetivos requisitos de admissão, ainda não se sabe com certezas de que este apresentará candidatura ao concurso.

 

            Neste sentido, não se pode deixar de concordar com o sentido da decisão final do STA no acórdão em apreço, onde se decidiu pela revogação do acórdão recorrido, na parte em que este decidiu no sentido da legalidade das deliberações que determinaram a constituição a alteração do júri em concurso referidas nos autos, pelo provimento à ação e, consequentemente, a anulação das deliberações do CA do CHVGN que determinaram a constituição e alteração do júri e pela condenação do CHVGN a integrar “A” na composição desse mesmo júri.

 

 

Acórdão disponível para consulta em: 

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bbcc6d5d8387968380257649003552d2?OpenDocument&ExpandSection=1

 

Trabalho realizado por: 

Beatriz Brazão, Nº de Aluno: 66167, Subturma 13

 

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Hierarquia Administrativa e o Dever de Obediência - Maria Inês Costa Pinto

Os sistemas administrativos: sua história e evolução; Marta Geada Salvador

Traumas e evolução do processo administrativo - Mariana Graça Moura (aluna nº66344)