Análise do Acórdão do STA (processo: 02038/03); (17/11/2004)

 Análise do Acórdão do STA

Processo: 02038/03; Data: 17/11/2004; 


  Irei proceder a uma análise do acórdão acima mencionado, que, sinteticamente, ilustra a situação de: S1, professor, que foi alvo de um processo disciplinar por violação do dever de zelo, de correção e dos deveres específicos previstos no art.10º, ponto 2, al. a), b) e c) do Estatuto da Carreira Docente. Resultou a aplicação da pena de 30 dias de suspensão (art.11º/1c do Estatuto da Carreira Docente) deste processo, decidida pelo Diretor Regional de Educação do Norte. No entanto, o professor S1, tendo em conta os arts.184º a 196º CPA, interpõe recurso hierárquico para a Secretaria de Estado da Administração Educativa desta decisão (art.195º CPA), todavia, a Secretaria de Estado nega provimento pelo despacho impugnado anteriormente. Visto isto, S1 recorre ao Tribunal Central Administrativo (TCA) do Norte, que procede a anular esta última decisão da Secretaria de Estado da Administração Educativa, alegando violação do princípio da imparcialidade, invocando os arts.6º, 44º/1 al. g) e 51º/1 do anterior CPA e o art.66º/2 CRP. Esta violação resultaria do facto de a decisão da Secretaria de Estado ter sido antecedida de "informação/proposta” elaborada pela mesma pessoa que havia subscrito a “informação/proposta” em que assentara a punição determinada pelo Diretor Regional da Educação do Norte.

  Não concordando com esta argumentação e com a anulação do referido despacho, o Secretário de Estado da Administração Educativa recorre da decisão do Tribunal Central Administrativo para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) considerando que “o acórdão recorrido faz, pois, uma incorreta apreciação do disposto no art.44º/1 al. g) CPA, ao entender que, por aplicação desta norma legal, o ato recorrido viola o princípio da imparcialidade”. S1, recorrido, alegou em defesa do acórdão recorrido. O MP (Ministério Público) reconhece que o recurso jurisdicional merece provimento, exatamente por não existir violação do princípio da imparcialidade. Tendo os vistos legais obtidos, o Supremo Tribunal Administrativo decide que a decisão recorrida não merece a censura que lhe vem dirigida pelo Secretário de Estado da Administração Educativa e, deste modo, nega provimento ao recurso a favor de S1 (recorrido).

  Assim, irei proceder à análise da parte do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente dos argumentos usados por este, tendo em conta os factos apresentados na secção II do referido acórdão, assim como dos factos ocorridos e já referidos.

  O acórdão que estamos a analisar é de 2004, ou seja, ainda vigorava o anterior CPA de 1991, por isso, é necessário adaptar o acórdão em análise ao novo CPA que, em 2015, sofreu inúmeras alterações de regime. Neste caso, importa referir que o princípio da imparcialidade referido está previsto no art.9º CPA, onde a imparcialidade é referida como ponderação dos interesses juridicamente protegidos e a abstenção de ponderação dos que não têm esta qualidade. Ana Fernanda Neves, num comentário ao atual CPA refere que: “o princípio da imparcialidade no CPA de 2015 ganhou consistência, pois em cada momento os tramites, atos ou formalidades procedimentais e as estruturas organizativas de suporte devem ser pensados, ajustados e avaliados como condições de possibilidade: as soluções organizatórias e procedimentais devem em concreto, assegurar, quer a isenção administrativa, quer a confiança nessa isenção”. Assim, podemos referir que o princípio da imparcialidade só necessita de si próprio para operar, como parâmetro de valoração de toda a atuação administrativa, mas sublinha igualmente um conjunto de técnicas e base na Constituição dirigidas à concretização do princípio, coadjuvantes ou garantes do mesmo.

  Na secção II do capítulo II do título I da parte III do CPA atual existe uma recolocação dos arts.44º a 51º do anterior CPA. 

  Assim, o professor Diogo Freitas do Amaral refere que “no novo CPA, é profundamente sublinhado que a Administração Pública deve tomar decisões determinadas exclusivamente com base em critérios objetivos de interesse público adequados ao cumprimento das suas funções específicas, não se tolerando que tais critérios sejam substituídos ou distorcidos por influencia de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais do órgão, do funcionário, ou do agente, interesses dos indivíduos, de grupos sociais, de partidos políticos, ou mesmo de interesses políticos concretos do GOV”.

  É importante referir também que o recurso hierárquico que, anteriormente, era definido como meio de impugnação de um ato administrativo perante o superior hierárquico do autor do ato com o objetivo de obter deste a revogação, anulação, modificação ou substituição do ato recorrido, é agora necessário, devido a um erro no CPA, procurar uma nova caracterização para o recurso hierárquico, dado que o mesmo, previsto no art.193º/1 CPA tanto pode ser utilizado para a impugnação dos atos administrativos, tanto como meio de reação contra a omissão contrária à lei dos atos administrativos. Por outro lado, no art.195º, faz-se alusão ao órgão autor do ato ou da omissão e ao “órgão responsável pelo incumprimento do dever legal de decisão” como sujeitos passivos de deveres específicos de notificação, e no CPA revogado, a referência simétrica era apenas dirigida ao órgão autor do ato administrativo.  Assim, podemos referir-nos ao recurso hierárquico como “garantia administrativa dos particulares que consiste em requerer ao superior hierárquico de um órgão subalterno a revogação ou anulação de um ato administrativo ilegal por ele praticado ou a prática de um ato ilegalmente omitido pelo mesmo.

  Importa referir também o argumento da violação (art.44º/1 al. g) e consequente violação do art.51º/1 CPA 91, que tem correspondência literal com os arts.69º/1 f) e 76º CPA atual, respetivamente. Esta dita violação advinha do facto de a decisão do recurso hierárquico ter sido antecedida de “informação/proposta” elaborada pelo mesmo jurista que havia subscrito a “informação/proposta” em que assentara a punição determinada pelo Diretor Regional da Educação do Norte.

  Na sua vertente negativa, o princípio da imparcialidade traduz a ideia de que os titulares dos órgãos e os agentes administrativos estão impedidos de interferir nos procedimentos, atos ou contratos que sejam relativos a questões do interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas com quem tenham relações económicas de especial proximidade, com o objetivo de não se poder suspeitar da isenção ou retidão da sua conduta. O dever de não interferência em determinados assuntos para não existir suspeitas de parcialidade é, posteriormente, sublinhado pela lei ordinária (arts.69º a 76º).

  No caso concreto que estamos a analisar, estamos perante uma situação que assenta perfeitamente na al. f) do art.69º/1 CPA – “os titulares dos órgãos a Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoa referidas na alínea b) ou com intervenção destas”. O novo CPA refere que qualquer órgão ou agente da Administração que se encontre em tal situação não pode, de maneira alguma, intervir no procedimento administrativo. Os nossos Tribunais Administrativos têm entendido que esta expressão deve ser interpretada mesmo à letra. A letra da lei diz “não podem intervir no procedimento” e isto deve exatamente entender-se no sentido mais estrito e com o maior rigor da expressão “não podem intervir de qualquer forma e em qualquer momento”.

  No entanto, Diogo Freitas do Amaral, refere que “esta interpretação não é a mais correta: só devem considerar-se proibidas as intervenções que se traduzem em decisão, ou em ato que influencie significativamente a decisão em certo sentido; serão lícitas as intervenções totalmente neutras, como as que se limitam a mandar agendar o assunto e atos semelhantes”. Ainda assim, esta interpretação nunca poderia ser adotada nesta concreta situação, tendo em conta que estão em causa dois despachos emitidos e totalmente decididos por uma mesma pessoa, com o objetivo de violação do princípio da imparcialidade e de corrupção da nova oportunidade atribuída a S1 de protestar da punição decidida pelo DREN pelo recurso hierárquico.

  Os atos administrativos nos quais intervenha um órgão ou agente impedido da intervenção serão anuláveis (art.76º/1 CPA). No entanto, ao contrário do que acontece com os membros dos órgãos autárquicos (art.8º/2 Lei 27/96), a lei não estabelece nenhuma sanção para os membros dos restantes órgãos da Administração Pública, seria necessária uma revisão no que toca a esta matéria, para corroborar o combate à corrupção.

  Neste caso, assim, e por aplicação do art.69º/1 f) CPA, o despacho do recurso hierárquico é ilegal e, por decisão do tribunal, anulável (art.76º/1).

  Por último, é invocada uma violação geral do princípio da imparcialidade e do art.266º/2 CRP.

  A imparcialidade, na sua vertente positiva, significa o dever da Administração de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos antes da sua adoção. Os atos ou comportamentos que, manifestamente, não resultem de uma forte ponderação dos interesses juridicamente protegidos deem considerar-se parciais. Esta obrigação de ponderação comparativa implica um limite à arbitrariedade administrativa, pela exclusão que assiste qualquer valoração de interesses alheios à previsão normativa, e, nomeadamente, pelo real poder de escolha da autoridade pública que só sobrevive onde a proteção legislativa dos vários interesses seja de igual medida e natureza.

  Deste modo, a imparcialidade proíbe que os órgãos da Administração intervenham em determinados procedimentos administrativos, ou tomem determinadas decisões, para evitar a suspeita de que estejam a agir com parcialidade.

  Visto isto, o princípio da imparcialidade só pode ser visto como a aplicação da ideia diversa que é a proteção da confiança dos cidadãos na seriedade e honestidade da Administração Pública.

  No caso apresentado, existe realmente uma violação da proteção da confiança do recorrido (S1) pela atuação parcial do recorrente (Secretaria de Estado).

  Tendo sido analisadas as questões relativas à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo, é importante referir que o recurso hierárquico devolve a faculdade de decidir ao superior, fazendo com que se abra uma nova oportunidade de avaliação da legalidade bem como uma nova oportunidade de análise dos aspetos em que o pretendido se acomoda com o interesse publico, no entanto, no caso em análise, essa oportunidade não foi aproveitada por violação dos artigos referidos anteriormente e por violação do próprio princípio da imparcialidade. Deste modo, e por este motivo, sou da opinião de que a decisão do STA foi pertinente e acertada sendo necessário agora, sendo que foi anulado o despacho do Secretario de Estado da Administração da Educação, a substituição do recorrente, que está impedido de participar na decisão de determinado caso, por outra pessoa, que não tenha motivos de suspeitas de parcialidade, para se pronunciar sobre o processo disciplinar de S1.


Camila Rocha e Silva TB - 66400


 


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Hierarquia Administrativa e o Dever de Obediência - Maria Inês Costa Pinto

Os sistemas administrativos: sua história e evolução; Marta Geada Salvador

Traumas e evolução do processo administrativo - Mariana Graça Moura (aluna nº66344)