Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 27/05/2009, relativo ao processo nº 0182/09 – Ana Paula Rocha

Conforme refere o professor Vasco Pereira da Silva, atualmente o direito administrativo não é um conjunto de regras relacionadas com privilégios exorbitantes da administração pública (século XIX), as conceções autoritárias já não fazem sentido nos nossos dias. No seu entendimento, o direito administrativo é o direito da função administrativa que tem por objetivo a satisfação das necessidades públicas que pode ser feita tanto de formas públicas como privadas, podendo misturar ambas. Isto não significa que o estado seja a única pessoa que prossegue o interesse público, sendo que há outras entidades criadas por este estado que vão igualmente prosseguir  o interesse público. Isto releva, para o acórdão em questão uma vez que estamos perante um caso de administração indireta do estado. De acordo com o professor Freitas do Amaral, a administração indireta do estado é “o conjunto das entidades públicas que desenvolvem, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa, ou administrativa e financeira, uma atividade destinada à realização de fins do estado”. Além disto pode ainda ser definida como “uma atividade administrativa do estado, realizada para a prossecução dos fins deste, por entidades públicas dotadas de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa ou financeira”. O professor Freitas do Amaral no volume I do  “Curso de direito administrativo” considera ainda que as entidades públicas empresariais  (E.P.E) fazem parte da administração indireta do estado, descrita anteriormente. No caso concreto estamos perante um hospital que assume forma de E.P.E, sendo uma pessoa coletiva com personalidade jurídica que adota a forma de empresa.

 

Estamos perante um funcionário público, um médico, a quem foi permitido desenvolver atividade médica – justamente a mesma que efetuava como funcionário – de caráter privado, no seu habitual local de trabalho enquanto agente do estado, mas fora do seu período normal de serviço. Neste âmbito, está em questão o recurso interposto pelo médico gastroenterologista relativamente a um despacho emitido pela ministra da saúde que negara provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do inspetor-geral de saúde que lhe determinou a reposição da quantia de 7.998.509 escudos (agora euros). Para fundamentar este recurso está presente a alegação de três vícios, enunciados: vicio de incompetência, vicio de falta de fundamentação e vicio de violação de lei.

 

De forma sumária importa referir as alegações realizadas por A. A afirma que só mesmo os órgãos daquele hospital têm competência para determinarem a reposição de quaisquer quantias face à lei de gestão hospital pelo que tal competência não cabe à entidade com competências disciplinar e designadamente ao inspetor-geral da saúde ou ao ministro respetivo que não podia por isso condenar o recorrente a fazer qualquer reposição, a fundamentação deste vicio é, relativamente ao código do procedimento administrativo, a violação dos artigos 30º (atual 37º) e 33º (atual 40º). Importa referir que este caso ocorreu em 2009 e em 2015 ocorreu uma alteração do código do procedimento administrativo. Apesar disto, a questão será maioritariamente analisada à luz do regime presente na altura. Relativamente ao vicio de falta de fundamentação, A considera que não existem fundamentos de facto e de direito para que a reposição tenha sido ordenada e argumenta ainda que houve benefícios para os utentes, deixando de haver filas de espera e a base legal utilizada é o artigo 124º CPA (atual 152º) e 125º (atual 153º). Por fim, relativamente ao vicio da violação de lei, o despacho violaria o estabelecido no artigo 3º do CPA uma vez que não existe nenhuma norma que justifique a ordenada reposição. Assim, A considera que foram postos em causa significativos benefícios com a revogação do acordo a pretexto da violação de aspetos meramente formais, o que é prejudicial.

 

Posto isto, importa apresentar a análise efetuada pelo tribunal: em 1º lugar a ministra da saúde concluiu que a reposição das quantias devidas foi apurada em sede de procedimento disciplinar pela então inspeção-geral dos serviços de saúde que é um órgão central do ministério da saúde. Além de que esta quantia foi determinada por haver uma conduta em contravenção com o clausulado no contrato e/ou o disposto na lei e por causa dessa mesma conduta. E desta competência do inspetor-geral da saúde não colide com as competências do conselho de administração do hospital. É neste ponto que que importa realçar que neste acórdão destaca-se os poderes de tutela e superintendência da governamentação em relação à administração indireta do estado uma vez que o ministro da saúde tem poderes de superintendência e tutela sobre os órgãos de administração dos hospitais. Assim, compete-lhe nos termos do art. 3º/1 do DL 19/88 praticar todos os atos que por lei lhe caibam, no que respeita à “organização e funcionamento dos hospitais”. Além disto, nos termos do artigo 3º/3, tem competência para “ordenar inspeções e inquéritos ao funcionamento dos hospitais”. Além disto tem competência para “decidir definitivamente, podendo mandar proceder a novas diligências, manter, diminuir ou anular a pena” – art. 75º/6 do estatuto disciplinar.

A matéria de facto foi minuciosamente apurada pela inspiração geral da saúde que concluiu que tais exames, ou a sua maioria, foram efetuados durante o horário de trabalho do recorrente, com recurso ao pessoal de apoio o que implicou, entre outros, que o hospital pagasse 2x por esses exames. Relativamente à falta de fundamentação, basta somar as quantias que indevidamente foram recebidas pelo médico que foram realizadas durante o seu horário normal do serviço violando as normas do acordo. É possível concluir que não existe qualquer erro nos pressupostos de facto, é bastante claro que durante o horário normal de trabalho o recorrente fez-se papar indevidamente honorários pelos exames efetuados, ficando isto provado  e o recorrente não fazendo qualquer prova em contrário.

Em suma, não surgem duvidas quanto ao facto de no período da vigência do acordo A ter realizado exames a doentes em horário coincidente com o horário de trabalho enquanto médico do SNS, sendo remunerados pelos dois desempenhos, ou seja, na qualidade de funcionário público e prestador de um serviço de natureza privada.

 

Analisando os argumentos apresentados por A, assim como a decisão pelo tribunal, considero que o supremo tribunal administrativo agiu bem ao decidir a negação de provimento ao recurso. A não agiu em conformidade com o principio da boa-fé (artigo 227º código civil) que tem grande relevância  no nosso ordenamento jurídico o que o que fez com que o seu comportamento se traduzisse numa situação de abuso de direito (artigo 334º código civil) e não a conduta da administração que apenas visou a reposição da legalidade violada pela conduta do recorrente. O principio da boa-fé que assume grande relevância aqui está consagrado no artigo 10º do CPA. Pela leitura deste preceito concluímos que a relação entre a administração e os particulares está adstrito ao principio da boa-fé na medida em que é necessária a proteção dos particulares face à administração pública. Dentro do principio da boa-fé existem 2 subprincípios, o principio da primazia da materialidade subjacente e o principio da tutela da confiança. Assim, a atuação da administração traduz-se na observância do principio da legalidade (artigo 3º CPA) e no respeito do principio pacta sunt servanda (artigo 406º CC).

 

Realizado por Ana Paula Teixeira Da Rocha – 66381 - PB13

Bibliografia:

AMARAL, DIOGO FREITAS, Curso de Direito Administrativo, Volume I


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